Ensaio sobre a cegueira branca
por Angélica Bongiovani
Sabemos que os deficientes visuais possuem uma cegueira real caracterizada por uma total ou imparcial impossibilidade de enxergar. Não vêem o rosto das pessoas, às cores dos objetos tocados no dia a dia, o pôr do sol, as estrelas, tampouco o anoitecer. Mas possuem muitas outras formas para enxergar tudo que está ao seu redor. Possuem outros órgãos dos sentidos extremamente aguçados. O olfato, tato, paladar, audição, intuição, inspiração e sensibilidade são fontes inesgotáveis em seu repertório. Quem realmente está cego? Eles que possuem a deficiência seja ela adquirida ou não ou todos nós que deixamos de enxergar aquilo que, para ver, não é necessário ter visão? Será que não estamos cegos para determinadas coisas?
Há coisas que para serem vistas não é necessário ter visão ocular, ela é totalmente dispensável. Basta somente intuir e ter sensibilidade. Esse título “Ensaio Sobre a Cegueira Branca” é de um filme de Fernando Meirelles baseado num romance do escritor português José Saramago (vencedor do Nobel de literatura). Retrata toda uma situação trágica sobre uma epidemia que acomete toda uma região. Vale a pena assistir. Lá todos vão ficando cegos, perdendo a visão de forma inesperada. O filme retrata em entrelinhas, exatamente a realidade nua e crua de como atualmente estabelecemos o contato com o outro. Segundo o escritor Saramago, “Sem dúvida, é o contato com o outro que nos transforma que nos amplia o horizonte, que nos concede a falência e a virtude de estarmos no mundo, que muitas vezes nos abre as cortinas das janelas de nossas almas”. A cegueira branca toma conta dos olhos da alma. Com o advento da modernidade ou a contemporaneidade, muitas vezes, essa cegueira branca, nos faz permanecer num espaço sem que nos seja possível, participar dele. Tem um momento no filme que achei fundamental e enfatiza bem o que estou falando sobre a falta de sintonia e sensibilidade entre as pessoas. No filme, a única pessoa que não fica cega é a esposa de um oftalmologista. Todos ficam reunidos num único lugar e vão sendo monitorados e guiados por ela. Há mulheres, homens, crianças e idosos, e lá passa a ser o universo de cada um, onde cada um começa a viver suas dificuldades e necessidades da vida cotidiana da forma como cada um acha que deve ser.
Precisam comer e beber, fazer suas necessidades fisiológicas, relacionar-se, amar e ser amado, serem compreendidos, enfim viver. Mas, estão cegos. E ali, só uma pessoa vê. E o que acima falei que me chamou a atenção é que tem momento que ela (esposa) não “enxerga de fato” o que está claro. O marido está em um momento de estresse extremo e ela não tem a sensibilidade de perceber e “ver”, outra moça cega “vê” e o atende no seu momento de fragilidade, angústia e desequilíbrio. Isto é o que mais percebemos no momento, em nossa realidade, essa grande cegueira branca. Temos visão, mas nem sempre “vemos”.
Atualmente vivenciamos tudo isto em quase todo o contexto social. Temos pressa, e muitas vezes o caminho é a cegueira branca, camuflamos, arrumamos artifícios, disfarces e mecanismos de defesa para fugir do problema. Em uma relação a dois, muitas vezes passamos anos convivendo num mesmo espaço e não nos conhecemos, simplesmente o melhor é ficar “cego” do que expressar ou manifestar. Pode acontecer de possuirmos uma cegueira branca interna, permanecemos então, estranhos ou ensimesmados.
A conseqüência é não abrir espaço para ninguém entrar. Ficamos mergulhados em nossas fantasias e elas podem produzir uma cegueira branca no universo real que estamos inseridos. Somos então impedidos de fluir para o espaço da visibilidade. Não crescemos sem o contato com o outro, sem as relações vinculares, sem o envolvimento e sem a construção, e tudo isso só existe se houver o pré-requisito fundamental que é ter uma visão emocional que vai além da visão ocular. A opacidade gerada pela cegueira nos impede de ver as coisas mais simples. Nós, psicoterapeutas ou psicanalistas, possuímos também, nossos pontos cegos, se não tratarmos em nós mesmos, aspectos internos conflituosos ou o desconhecido em nós mesmos, ficamos cegos diante dos mesmos problemas que os pacientes nos trazem,gerando impasses e bloqueios dificultando assim, elaborações, desenvolvimento e o crescimento, por isso fazemos também análise e não podemos ficar sem. Tanto o livro como o filme faz uma tentativa de nos obrigar a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto mesmo diante da pressão dos tempos e do que se perdeu.
Fonte:
http://www.sinomar.com.br/portal/conteudo.asp?codigo=4968&page=85
Matéria cedida por Pedro Clivati
Veja o filme no Megavideo (click na imagem)